Modalidade atende a brasileiros de baixa renda e com dificuldade de acesso a crédito junto a bancos tradicionais. Juros podem passar de 600% ao ano; clientes reclamam em redes sociais. Um tipo de empréstimo que está sendo oferecido no mercado pede o celular do cliente como garantia. Em caso de a dívida não ser paga, o celular é bloqueado, o que vem gerando reclamações dos usuários.
Essa modalidade está funcionando sem uma regulação específica do Banco Central (BC).
Modalidade de empréstimo utiliza aparelho telefônico como garantia.
Pongsawat Pasom/Unsplash
O mercado de crédito com garantia de celular é voltado para pessoas de classes mais baixas, com juros que podem chegar a mais de 600% ao ano. A única garantia do empréstimo é o celular do cliente.
Em caso de não pagamento, o aparelho fica inutilizado, deixando o usuário sem acesso a aplicativos. Para voltar a ter controle total do telefone, o usuário tem que quitar a dívida.
Essa modalidade de concessão de crédito atende a milhões de brasileiros, mas funciona no Brasil sem regulamentação específica pelo Banco Central.
Ao g1, o BC disse que as instituições financeiras têm liberdade para oferecer crédito, mas que a regulamentação vigente estabelece que os clientes devem ter acesso a informações claras sobre penalidades e eventuais riscos ao obter empréstimos. (leia a resposta completa mais abaixo)
A reportagem questionou se o Banco Central considera o bloqueio do celular como uma garantia válida em operações de concessão de crédito.
O BC disse que as empresas têm liberdade para definir os seus perfis de risco, devendo gerenciá-lo. “Destacando-se, entre eles, o risco de crédito, inclusive no que diz respeito à avaliação periódica do grau de suficiência dos instrumentos mitigadores (dentre estes as garantias recebidas).”
Banco Central, que regulamenta o setor, diz que clientes devem ter acesso a informações claras sobre penalidades e riscos.
Raphael Ribeiro/BCB
Reclamações
Para receber o dinheiro na conta, o usuário precisa baixar um aplicativo no celular, que atua como “super administrador” do aparelho. Ou seja, tem permissões especiais para acessar qualquer aplicativo do telefone, por exemplo.
O tema viralizou a partir de relatos sobre o tema em redes sociais. É o caso de Jonas S. Marques, que contou na rede X que recebeu um pedido de um amigo para deletar o aplicativo de uma dessas empresas, a Super Sim, do celular de sua tia.
A mulher havia sido instruída pela empresa a baixar o aplicativo para fazer uma simulação de empréstimo. Após ter desistido, ela não conseguiu deletar o aplicativo de seu celular.
Marques diz que o programa havia desabilitado o botão “desinstalar”, o que dificulta a remoção por alguém sem conhecimento técnico.
“Dentre as coisas desabilitadas estavam o botão de desinstalar o app [aplicativo], o próprio menu de remover o acesso administrativo dele e o botão de forçar a parada do app”, conta.
Nas redes sociais e em sites como o Reclame Aqui, empresas que oferecem essa modalidade de crédito acumulam reclamações de usuários.
A principal delas é a dificuldade para deletar o aplicativo que bloqueia o celular, mesmo após pagamento da dívida ou desistência do empréstimo.
Controle do celular
Procurada, a Super Sim admitiu que o seu aplicativo atua como administrador do dispositivo.
“Nosso aplicativo de restrição solicita apenas duas permissões: a permissão de administrador do dispositivo e a permissão para enviar notificações”, declarou.
Página da empresa informa que ‘em caso de inadimplência, o celular será travado para uso’, com acesso somente a ligações de emergência.
Reprodução
A empresa continua: “A permissão de administrador do dispositivo concede ao aplicativo certos privilégios para implementar políticas de segurança no dispositivo, incluindo a restrição de acesso a funcionalidades não essenciais no caso de não pagamento das dívidas.”
A Super Sim afirma que a permissão de administrador do dispositivo “não dá acesso a nenhuma informação sensível ou pessoal”. A empresa disse que não acessa, armazena ou compartilha informações pessoais. (leia a íntegra ao final desta reportagem)
Emissão de cédula de crédito
No site da Super Sim, antes mesmo de solicitar o empréstimo, o cliente deve autorizar a emissão de cédula de crédito bancário (CCB) junto ao Banco Central. Isso é feito na etapa de simulação de crédito.
A cédula é um título emitido em nome do devedor em favor do banco ou instituição financeira, em que o cliente se compromete a quitar o empréstimo.
Questionada pela reportagem, a Super Sim disse que “a princípio há apenas uma solicitação para o envio posterior da CCB, que será enviada após a aprovação final da concessão de crédito”.
O Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) entende que há violação ao direito de informação do consumidor. “Por essa tela, não há informação clara se para simulação do crédito essa emissão de cédula de crédito bancária seria necessária nesse momento”, diz a entidade.
O Idec afirma que a emissão da cédula “deveria ficar adstrita ao momento de aceitação das condições do empréstimo pelo consumidor, porque até então o consumidor ainda está na fase de escolha se aceita ou não o empréstimo”.
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‘Prática abusiva’
“A gente tem uma série de direitos sociais que são garantidos pela Constituição, como por exemplo o direito à saúde, ao transporte, que acabam sendo inviabilizados uma vez que a própria Super Sim, por exemplo, inviabiliza o acesso a esse telefone celular”, declarou o coordenador jurídico do Idec, Christian Printes.
Para o Idec, a medida do bloqueio do telefone é ilegal. “Isso é de uma abusividade gigantesca (…). Esse tipo de oferta de crédito não deveria acontecer porque ela retira diversas possibilidades que os consumidores têm. Hoje em dia, todo mundo precisa do celular, ele é um bem essencial para que você consiga trabalhar, ter acesso a benefícios sociais de maneira geral”, afirmou.
O g1 solicitou as condições de empréstimo à Super Sim. Em seu site, a empresa diz que não bloqueia:
recebimento e a efetivação de chamadas;
recebimento e o envio de SMS;
utilização do aplicativo WhatsApp;
aplicativos de “gig economy” (Uber, Rappi, 99, Loggi e outros);
aplicativos de órgãos governamentais (como ConecteSUS, Carteira digital de trânsito);
aplicativos das maiores instituições financeiras do país (Itaú, Santander, Bradesco, Banco do Brasil, Caixa econômica federal, Nubank, Inter, etc).
Essa previsão foi atualizada no site da empresa entre agosto de 2022 e janeiro de 2023, período em que a empresa passou a ser questionada judicialmente por seu modelo de negócios.
Questionada sobre a mudança, a Super Sim disse que “a atualização dos nossos termos de uso, feita periodicamente, visa aprimorar a experiência do cliente, refletir os avanços tecnológicos e garantir a conformidade com as necessidades comerciais”.
Empresa diz que aplicativos de órgãos governamentais não ficam bloqueados.
John Pacheco/G1
Bloqueio é questionado na Justiça
Em novembro de 2022, o Ministério Público do Distrito Federal e o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) entraram com uma ação no Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT) para impedir que a Super Sim exigisse instalação de aplicativo para bloqueio em novos celulares sob pena de R$ 10 mil por contrato assinado.
A ação partiu de um contrato recebido pelo Idec, em que o consumidor havia adquirido um empréstimo no valor de R$ 500 com a garantia de celular e a instalação do aplicativo da Super Sim.
Em julho do ano passado, os órgãos conseguiram uma sentença provisória favorável, que impediu a empresa de exigir a garantia do celular.
Na decisão , a juíza responsável pelo caso afirmou que “o celular não é utilizado como garantia, mas sim como forma de coerção/constrição para forçar o consumidor a pagar a dívida”.
“Essa prática comercial se mostra abusiva, pois impede o acesso dos consumidores às funcionalidades do aparelho celular, e, consequentemente, a bens e serviços sem relação com o empréstimo financeiro, aproveitando-se da vulnerabilidade dos consumidores”, diz a sentença.
Em novembro, no entanto, a segunda instância do mesmo tribunal aceitou um recurso da Supersim e suspendeu a aplicação da proibição até a análise definitiva sobre o caso, que ainda não ocorreu.
O que diz a Anatel
Desabilitar a linha ou o aparelho de um cliente é uma prática conhecida como “kill switch”, considerada abusiva pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) se praticada pelas operadoras de telefonia em caso de inadimplência.
A Anatel não regula aplicativos ou soluções financeiras, tendo sua atuação restrita às redes de telecomunicações e ao mercado de telefonia. Portanto, para a agência, não cabe a ela a fiscalização do bloqueio do aparelho.
No mercado das linhas de telefonia móvel e fixa, contudo, essa prática é considerada abusiva.
“Cabe esclarecer que o bloqueio de celulares nas redes das prestadoras, por motivo de inadimplência junto à prestadora, não é permitido pela regulamentação da Anatel”, disse a agência em manifestação assinada em 2022.
Ao g1, a Anatel esclareceu que o bloqueio de celulares é possível por meio das linhas móveis, sendo feito em caso de roubo, extravio ou furto.
“Destaca-se, no entanto, que o bloqueio derivado do CEMI [Cadastro de Estação Móveis Impedidas], realizado diretamente na rede das prestadoras, é distinto do relatado, que é feito diretamente no dispositivo por meio de aplicativo e impede o uso de determinadas funções do terminal, não havendo neste último qualquer envolvimento das prestadoras do SMP [Serviço Móvel Pessoal, telefonia móvel] ou da Anatel”, afirmou a agência.
O que diz o Banco Central
Questionado sobre a regulamentação dessa garantia de crédito, o Banco Central disse que não há norma específica e que as instituições financeiras têm liberdade para realizar as operações. Leia a íntegra:
“Não há norma específica para crédito com garantia de celular, mas as instituições financeiras têm liberdade para realizar operações de crédito obedecidas as leis e normas aplicáveis bem como seu objeto social e as autorizações requeridas.
“Cabe esclarecer, ainda, que a regulamentação vigente estabelece que as instituições financeiras, na contratação de operações e na prestação de serviços, devem assegurar, entre outros, a adequação dos produtos e serviços ofertados ou recomendados às necessidades, aos interesses e aos objetivos dos clientes e usuários, e a prestação, de forma clara e precisa, das informações necessárias à livre escolha e à tomada de decisões por parte de clientes e usuários, explicitando, inclusive, direitos e deveres, responsabilidades, custos ou ônus, penalidades e eventuais riscos existentes na execução de operações e na prestação de serviços.”
O g1 também perguntou se o Banco Central considera o bloqueio do celular como uma garantia válida em operações de concessão de crédito.
Leia a resposta da instituição: “Obedecidos os requisitos legais e regulamentares aplicáveis, as instituições financeiras têm liberdade para definir os seus perfis de riscos e, por força da normatização vigente, devem manter estrutura de gerenciamento de riscos contínuo e integrado, destacando-se, entre eles, o risco de crédito, inclusive no que diz respeito à avaliação periódica do grau de suficiência dos instrumentos mitigadores (dentre estes as garantias recebidas).”
O que diz a Super Sim
Leia a íntegra da resposta da Super Sim aos questionamentos da reportagem:
“SuperSim é uma fintech inovadora que se dedica à inclusão financeira das pessoas sub-bancarizadas das classes C e D, oferecendo soluções acessíveis e rápidas. Nosso objetivo é democratizar o acesso ao crédito, proporcionando empréstimos personalizados com transparência e segurança.
A SuperSim esclarece que opera, assim como seus parceiros bancários, sob autorização judicial concedida pelo TJDF e que continua confiante sobre seu modelo de negócio, que se mostra viável e aplicável no Brasil. Reitera ainda que sempre atuou dentro dos limites legais estabelecidos, respeitando integralmente o ordenamento jurídico vigente.
Sobre o envio da Cédula de Crédito Bancário (CCB), a princípio há apenas uma solicitação para o envio posterior da CCB, que será enviada após a aprovação final da concessão de crédito. Os termos de uso podem ser consultados através do seguinte link: https://www.supersim.com.br/termos/condicoes/
Nosso aplicativo de restrição solicita apenas duas permissões: a permissão de administrador do dispositivo e a permissão para enviar notificações. A permissão de administrador do dispositivo concede ao aplicativo certos privilégios para implementar políticas de segurança no dispositivo, incluindo a restrição de acesso a funcionalidades não essenciais no caso de não pagamento das dívidas.
É importante ressaltar que essa permissão não dá acesso a nenhuma informação sensível ou pessoal. A permissão para enviar notificações é necessária para que possamos enviar notificações relevantes aos clientes. Temos acesso e armazenamos apenas a marca e o modelo do celular utilizado. Não acessamos, armazenamos ou compartilhamos nenhuma informação pessoal do dispositivo ou do cliente por meio do aplicativo de restrição.”
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