País está há quase três anos sem ver novas empresas abrindo capital. Especialistas explicam os motivos da paralisia e por que a nova bolsa pode melhorar o acesso de empresas em fase de expansão ao mercado de capitais. Touro de Ouro instalado em frente à Bolsa de Valores de SP (B3), na rua XV de Novembro, no Centro de São Paulo.
Divulgação/B3/TouroInc
O anúncio de uma nova bolsa de valores no Rio de Janeiro (RJ) foi comemorado pelo prefeito Eduardo Paes (PSD) e por Claudio Pracownik, presidente da empresa responsável pela operação da bolsa carioca, a Americas Trading Group (ATG).
A cidade volta a ter uma bolsa de valores depois de 20 anos. Mas a notícia vem em meio a um momento difícil para o mercado de IPOs (sigla em inglês para Ofertas Públicas de Ações) no Brasil: já são quase três anos de seca, em que nenhuma empresa brasileira se lançou na bolsa.
O último IPO brasileiro foi do Nubank, que abriu capital na Bolsa de Valores de Nova York, a NYSE, em dezembro de 2021. Naquele ano, inclusive, houve recorde no número de registros de ofertas públicas primárias de ações: foram 46 empresas no ano.
De lá para cá, o nível mais elevado de juros, mesmo em economias desenvolvidas como os Estados Unidos, diminuiu o apetite de investidores por ativos de renda variável. Esperando um momento mais propício para captar dinheiro no mercado, as empresas se retraíram.
Um relatório da consultoria EY apontou que o número total de IPOs feitos pelo mundo encolheu 12% no primeiro semestre deste ano em relação a igual período de 2023, de 624 para 551 ofertas registradas.
O volume financeiro movimentado neste mesmo intervalo registrou uma queda de 16%, indo de US$ 62,5 bilhões (R$ 340,8 bilhões) para US$ 52,2 bilhões (R$ 284,6 bilhões) na mesma base de comparação.
Segundo especialistas ouvidos pelo g1, a inflação persistente que impede os Bancos Centrais de baixarem os juros ainda deve adiar a volta dos IPOs para o final deste ano — ou até para o começo de 2025.
Mas o que está acontecendo com o mercado de capitais?
Especialistas consultados pelo g1 destacam três principais fatores para a falta de IPOs no Brasil:
A demora na queda de juros dos EUA;
A retirada de recursos estrangeiros da bolsa brasileira; e
A interrupção dos cortes na taxa básica de juros brasileira, a Selic.
▶️ Juros nos Estados Unidos
Um dos principais motivos para a redução do interesse das empresas em abrir capital é a frustração com o adiamento do ciclo de cortes de juros nos EUA por parte do Federal Reserve (Fed, o banco central norte-americano).
Em cenário de juros mais altos por lá, investidores preferem direcionar o dinheiro para os Treasuries (ativos do Tesouro norte-americano, considerados os mais seguros do mundo), do que colocar em aplicações de risco. Em outras palavras: se há boa rentabilidade na segurança, o interesse em bolsa de valores diminui.
No final do ano passado, com a melhora dos indicadores de inflação e dos sinais de uma economia mais contida nos EUA, o mercado não apenas previa que o Fed faria o primeiro corte de juros entre março e maio, como também esperava de seis a sete reduções das taxas por parte da instituição ao longo do ano.
Houve uma empolgação em todo o mercado financeiro. O Ibovespa, principal índice da bolsa brasileira, bateu seguidos recordes. Mas esse cenário não se concretizou, uma vez que os índices de preços norte-americanos não cederam e a atividade da maior economia do mundo continuou acelerando.
“O mundo inteiro foi decepcionado com a expectativa de redução de juros nos Estados Unidos que ainda não veio. E como isso não aconteceu, temos dificuldade em ver fluxos [de recursos] gringos entrando no país”, explica o corresponsável pela área do banco de investimentos do Bank of America (BofA) no Brasil, Bruno Saraiva.
▶️ Fluxo estrangeiro no Brasil
Conforme ficou claro que os juros demorariam a cair nos EUA, a maior atratividade dos títulos públicos norte-americanos se reforçou e reduziu ainda mais o interesse em investimentos de risco nos países emergentes, como o Brasil.
Os investidores estrangeiros respondem por mais da metade do volume movimentado mensalmente na B3, a bolsa de valores brasileira. Em 2024 até 12 de julho, foram retirados mais de 30 bilhões em recursos estrangeiros do mercado nacional.
“Assim como o mundo, a gente também vinha passando por questões de juros, inflação e atividade, com previsões mais otimistas no começo do ano que não vieram”, diz o sócio e especialista em IPOs da EY Brasil, Rafael Santos.
A preocupação com o cumprimento das metas de controle dos cofres do país já vinha desde abril, quando o governo propôs reduzir as metas para as contas públicas dos próximos anos e passou a prever superávit (receitas maiores que despesas) apenas em 2026.
Os últimos dados, inclusive, não são muito animadores. Segundo a Secretaria do Tesouro Nacional, as contas do governo federal registraram déficit primário de R$ 61 bilhões em maio deste ano.
E esses temores cresceram em junho, quando novas falas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) refletiram nos mercados.
Entre outras coisas, o presidente afirmou que seria necessário avaliar se a saída para as contas públicas seria via corte de gastos ou aumento na arrecadação, além de ter feito críticas à atuação do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e ter dito que o real estaria sendo alvo de um ataque “especulativo”.
Mas mesmo diante da maior preocupação dos investidores — que contribuiu para que o câmbio atingisse os R$ 5,66 em junho, maior patamar em dois anos e meio — especialistas apontam que a má impressão foi maior do que a real mudança de cenário, e os números brasileiros seguem consistentes.
“A verdade é que não houve uma piora significativa. O Brasil continua fazendo reformas, vai ter reforma tributária e várias outras melhorias. O desemprego também está baixo e a renda está crescendo. Mas o fato é que os ruídos não ajudam”, afirma o diretor do Bradesco BBI Felipe Thut.
▶️ Interrupção de cortes na Selic
Por fim, outro ponto que também tem afastado o interesse dos investidores por ativos de renda variável é a interrupção do ciclo de cortes de juros pelo Banco Central, desde a última reunião de política monetária feita pela instituição, em junho.
Como o g1 já mostrou, o principal motivo para a pausa nos cortes da Selic foi um reajuste das expectativas de inflação pelos agentes econômicos, que passaram a projetar um aumento mais veloz dos preços, deixando-os mais longe da meta do BC.
É o que o mercado chama de “desancoragem” das expectativas. Esse ambiente de mais incerteza sobre os preços deixa o BC mais receoso sobre o patamar em que precisa manter os juros para que se mantenha o controle da inflação.
“Para que os investidores voltem a investir em bolsa de valores novamente, temos que ver queda da Selic e dos juros de longo prazo, para que o mercado de renda fixa ofereça uma rentabilidade menor e isso incentive os investidores a voltar para a renda variável”, disse Thut, do Bradesco BBI.
E quando o cenário para IPOs deve melhorar?
De acordo com os especialistas consultados pelo g1, é preciso ainda ver uma melhora concreta no cenário para que as empresas voltem a abrir capital na bolsa de valores. Assim, a previsão é que o mercado volte a se aquecer apenas no final deste ano — ou no começo de 2025.
Segundo dados da ferramenta FedWatch do CME Group, o mercado acredita atualmente em uma chance de 85,6% de que o Fed dê início ao ciclo de cortes dos juros norte-americanos em setembro.
Com a redução de juros nos Estados Unidos, abre-se um espaço não apenas para uma menor retirada de recursos da bolsa pelos estrangeiros, como também para que o BC brasileiro volte a cortar os juros por aqui eventualmente.
O último relatório Focus, do Banco Central, no entanto, projetava uma Selic de 10,50% ao ano para o final de 2024 e de 9,5% ao ano para 2025. Isso significa que, pelas projeções do mercado, um novo corte da taxa básica brasileira só deve acontecer no próximo ano.
Thut, do Bradesco BBI, diz ainda que o mercado também aguarda os resultados das eleições presidenciais norte-americanas para calibrar as apostas. As projeções sobre o pleito seguem envoltas em incertezas.
“A eleição norte-americana tem impacto em qual vai ser a política dos candidatos e qual vai ser o impacto na inflação de lá, porque também há uma preocupação do investidor com a dívida dos Estados Unidos”, explica o diretor do Bradesco BBI.
Ainda segundo especialistas, após tanto tempo sem novas ofertas públicas de ações, a expectativa é que a retomada desse mercado venha por meio de empresas mais robustas.
“Toda retomada de mercado volta primeiro com operações grandes, porque são elas que geram liquidez no mercado secundário no dia seguinte. Assim, devemos ver uma retomada com companhias mais sólidas e com histórias provadas, governança de primeira e previsibilidade financeira”, explica Bruno Saraiva, do BofA.
O executivo destaca setores como infraestrutura, energia, saneamento e logística como prováveis destaques na volta do mercado.
Para Santos da EY, no entanto, a estimativa é que a volta dos IPOs de empresas brasileiras aconteça primeiro no mercado norte-americano, com mais companhias se preparando para abrir capital nas bolsas de Wall Street. Até agora neste ano, o índice S&P 500 acumula um avanço de mais de 15%.
“As companhias competem por um capital que, hoje, é mais limitado no Brasil. O que as empresas buscam é liquidez e elas estão enxergando que há mais capital e disposição para ativos de risco no exterior”, explica o especialista.
Ele destaca, no entanto, que não são todas as empresas que devem conseguir ir para as bolsas dos Estados Unidos. “O mercado norte-americano é mais rigoroso, e não é todo mundo que está pronto”, conclui.
E a nova bolsa do Rio? Pode ajudar o mercado de IPOs?
Para os analistas consultados pelo g1, a bolsa carioca deve ter pouco efeito no número de empresas que devem decidir abrir capital no Brasil, apesar de ser vista como alternativa positiva para trazer mais maturidade para o nosso mercado.
Para Santos, da EY, a tendência é que a nova bolsa do Rio traga um acesso maior ao mercado de capitais, como forma de atender às companhias em fase menos madura, ou em fase de expansão.
“Essas iniciativas de mercado de capitais são muito importantes, porque você coloca um nicho de listagem para companhias que ainda não têm espaço no mercado. Se a bolsa do Rio trouxer esse tipo de iniciativa, sem dúvida isso trará benefícios superimportantes”, acrescenta Santos.
Segundo o secretário municipal de desenvolvimento urbano e econômico do Rio, Chicão Bulhões, a criação de uma bolsa no Rio de Janeiro deve trazer competitividade com a B3 e ser positiva para o mercado.
“Concorrência significa normalmente melhor atendimento, produto e preço para quem contratar o serviço. O custo do mercado financeiro no Brasil ainda é muito alto, por isso esperamos, sim, que a abertura da nova bolsa melhore essa competitividade e torne o mercado de capitais mais acessível não só para as micro e pequenas empresas como para o cidadão comum”, diz.
Ele destaca, ainda, que há a estimativa de que a nova bolsa carioca também tenha reflexos na arrecadação da cidade.
Como a nova bolsa deve funcionar?
Segundo o presidente da ATG, Claudio Pracownik, o modelo proposto pela companhia nesse primeiro momento é a dupla negociação — ou seja, que os ativos que já são negociados na B3 também sejam negociados na nova bolsa do Rio de Janeiro, a ATS (American Trading Service).
“Na primeira fase de operação, a ATS não fará listagem de novas empresas. No entanto, esse tipo de serviço está em nosso ‘pipeline’ [previsto em novas etapas] para o futuro, quando pretendemos lançar um produto que, obedecidos os dispositivos regulatórios, seja prático, ágil e com um preço justo”, afirma Pracownik.
Para que as empresas possam optar pela dupla negociação, elas precisarão aderir à ATS. Com isso, as ações das empresas negociadas na B3 já farão parte da nova plataforma.
A primeira fase de atuação da ATS será composta por mercado de ações à vista, aluguel de ações e negociação de cotas de fundos.
“Acredito que não teremos nenhum tipo de obstáculo ou dificuldade para conseguir essa aderência das empresas. Primeiro, temos a certeza de que temos um produto muito bom. Segundo, é de interesse das empresas de capital aberto ter maior liquidez para suas ações. Quanto maior liquidez, melhor para o acionista e também para o preço”, diz o executivo.
Por fim, sobre o maior acesso do mercado de capitais para empresas de médio porte, Pracownik afirma que será necessária a criação de um ecossistema próprio para este setor.
“É necessário, a meu ver, […] estímulos para os fundadores e os investidores, abrangendo a redução de custos de listagem, regras próprias de governança, educação financeira e um estímulo fiscal, reduzindo, por exemplo, o imposto sobre ganho de capital para as transações com os valores mobiliários dessas empresas”, afirma.
O processo de mudança de nome da nova bolsa ainda está em curso.
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